“Meu Querido Henrique,
Faz hoje, precisamente, um ano, quatro meses e dezoito dias que os nossos olhares se cruzaram pela primeira vez, que trocamos as primeiras palavras. Faz hoje um ano, quatro meses e dezoito dias que nos conhecemos e que causou em mim a pior impressão possível.
A manhã estava gelada e eu sentia-me meio perdida. A clínica era fria e impessoal, as pessoas eram prestáveis e simpáticas, mas sempre detestei hospitais e por isso nada ali conseguia fazer-me sentir confortável. Foi a primeira vez na vida que desmaiei. Nunca antes me havia acontecido. Recordo-me de ter acordado nauseada, muito tonta e com três enfermeiros e um médico à minha volta. Depois de me recompor voltei à sala de espera. Faltava fazer alguns exames e queria despachar-me o mais depressa possível. Se não fosse o enfermeiro que me tirou sangue, provavelmente nem teríamos reparado um no outro naquele momento, mas o enfermeiro dirigiu-se à sala a perguntar quem tinha sido a pessoa a desmaiar no bar, e todos os olhos se voltaram para mim. Todos, incluindo os seus, azuis e gelados como icebergs. Trocámos algumas, poucas, palavras e foi cada um para seu lado. Não gostei de si. Achei-o frio, antipático e arrogante. Mas depois de sair da clínica o meu pensamento não mais se deteve nem em si nem em nenhuma daquelas nove pessoas que estavam connosco.
Um mês e pouco depois voltei a cruzar-me com os outros nove. Foi a primeira vez, desde aquele dia, que me lembrei de si. Não vê-lo ali foi estranho. Afinal era o dia em que saiam os resultados dos exames que os onze tínhamos feito quase em simultâneo. Mas no dia 2 de Janeiro o mistério desfez-se e lá estava o Menino com o seu ar arrogante e prepotente. Não gostei de si, e durante algum tempo evitei que os nossos caminhos se cruzassem. O Menino era-me desagradável.
Mas, um dia, tudo mudou. Jamais imaginaria que uma simples implicação com o padrão do seu casaco, mais uma entre tantas, nos conduzisse até aqui, até este lugar onde lhe digo que já não sou capaz de continuar mais a percorrer um caminho que ambos percebemos que não chegará a lado algum.
Muitas foram as vezes, ao longo deste quase ano e meio, que me despedi de si, dizendo-lhe “Adeus”, fechando-lhe a porta da minha vida, ou acreditando que a fechava. Mas os motivos eram sempre os errados e a minha porta nunca se fechou verdadeiramente, pelo menos não até ontem. Depois daquela conversa percebemos os dois, que chegados à encruzilhada, era o momento de os nossos caminhos se separarem.
As minhas palavras ficarão para sempre gravadas em si, como se de uma rocha se tratasse. Talvez a erosão provocada pelos anos que hão-de passar consiga minorar as marcas daquelas palavras. Sei que fui dura consigo, senti-o ainda mais quando me disse, já sem força para reagir, “Maria, estou tão cansado…”. Estamos os dois, embora de formas diferentes.
Percebi, no decurso daquela conversa, que nada mais estava ao meu alcance. As palavras que proferia eram cada vez mais ásperas e duras, mas não havia outra forma de lhe dizer tudo aquilo. Percebi, percebeu, percebemos, que as minhas palavras eram um novo “Adeus”, mas desta vez fundamentado com os argumentos correctos.
Disse-me estar cansado, e não tenho porque não acreditar. Mas eu também estou cansada… Cansada da montanha russa de emoções em que vivo desde que começámos a perceber-nos na vida um do outro… Cansada de não saber se quero ficar consigo ou se, pelo contrário, tenho de lutar pelo Bernardo e por aquilo que ele já significava para mim antes de o Menino entrar em cena… Cansada de o ver destruir-se, como tem feito nos últimos tempos… Cansada de sentir que nada posso fazer para combater essa ideia que interiorizou de que não merece ser feliz… Cansada, simplesmente cansada e sem força para continuar a lutar…
Ontem disse-lhe, e reitero-o aqui, o Menino merece mais do que isto em que está a transformar-se, merece ser feliz. Mas o caminho para a sua felicidade não passa por mim, e já percebi isso há muito tempo. Não tinha, ainda, tido oportunidade de dizer-lhe isso mesmo, mas ontem esse momento chegou. Sei também aquilo de que preciso para ser feliz e sei, ainda, que o caminho da minha felicidade não passa por si.
Pela primeira vez, em muito tempo, tomo uma decisão consciente do que ela acarreta, e com a certeza de que foi a mais acertada de todas as que podia tomar. Pela primeira vez, consigo dizer-lhe “Adeus” porque sinto que acabou de vez, e não por causa de alguma atitude sua que menos me tenha agradado ou por estar confusa e dividida entre si e o Bernardo.
Finalmente, e após tanto tempo, percebi que o Menino e o Bernardo não são, ao contrário do que eu julgava, dados da mesma equação. E é por ter percebido isso que consegui compartimentar ambos em faces distintas da minha existência.
Não julgue que a minha decisão é motivada pelo Bernardo. Eu e ele somos apenas bons amigos, e nada mais. O futuro a Deus pertence, e nenhum de nós possui a clarividência para prever o dia de amanhã, mas neste momento o que nos une é uma forte e cúmplice amizade. Sim, sei que não tenho de explicar-lhe isto, mas é importante para mim fazê-lo para que entre nós não fiquem quaisquer equívocos ou questões pendentes. Quero sair desta relação limpa de qualquer mal entendido, de qualquer desavença. E é por isso que tenho a necessidade de lhe explicar que não estou a ir-me embora por causa do Bernardo. O Menino é o motivo do meu afastamento… o Menino e a forma como está a torturar-se e destruir-se. Confesso que perdi a força para continuar a travar esta batalha inglória e perdida logo à partida.
Sabe que sempre que precisar de mim, estarei aqui. O meu abraço será seu, como já foi tantas outras vezes, sempre que a vida lhe fizer menos bem. Mas o meu passo não mais andará coordenado com o seu. A partir daqui seguimos em direcções opostas, rumo ao futuro e ao que a vida nos reserva.
Guarde bem, junto ao peito, como creio que até agora guardou, aquilo que lhe dei. Enquanto o tiver, terá, também, sempre consigo uma parte de mim. “Vai ficar aqui, junto ao meu coração, onde é o lugar dele…”, disse-me quando lho dei. Quero que o guarde bem, e que sempre que olhar para ele se recorde do que fomos um para o outro.
Muito mais poderia escrever, mas as palavras já nos feriram demais. Sinto que ontem o magoei como nunca antes havia feito. E não sei se algum dia será capaz de perdoar a minha dureza perante tudo isto.
Só quero que entenda que meu “Adeus” não deriva do facto de eu me preocupar mais consigo, pelo contrário. O meu “Adeus” encontra justificação na ausência de coragem e força em mim para continuar a assistir ao seu processo de auto-destruição.
Parto, não por não gostar de si, mas ao invés, parto porque gosto muito de si e não sou capaz de continuar a compactuar com tudo isto.
Adeus, meu querido Henrique.
Beijo enorme no fundo do coração,
Maria”